No último sábado, dia 27 de agosto, a morte de Lupicínio Rodrigues completou 48 anos. Efeméride inexata, daquelas que passam despercebidas. Mas uma data como essa, esquecida e quebrada, vem bem a calhar para falarmos deste pequeno e esquecido disco que o sambista gaúcho lançou em 1960, pela Copacabana: Lupicínio Rodrigues e a Bossa Velha, um compacto triplo de 45 rotações.
Lupicínio Rodrigues e a Bossa Velha, 1960. Compacto triplo de 45 rotações por minuto, selo Copacabana (CEP-4588). Acervo pessoal. |
É um dos poucos discos que Lupi gravou como intérprete, o único na década de 1960. Certamente o menos famoso e o menos ouvido da sua obra. Se Roteiro de um Boêmio, gravado nos idos de 1950, teve seguidas reedições ao longo dos anos e Dor de Cotovelo (1973) teve ao menos duas reprensagens em LP, o humilde disquinho de 1960, com as suas seis faixas, jamais foi relançado ou reposto em circulação através de antologias/compilações. Um disco tão ignorado que chega a parecer insólito, absurdo: nem mesmo Augusto de Campos, que teve a chance de catalogar a obra de Lupi ao lado do próprio artista, coloca esse EP na ampla relação discográfica que elaborou como anexo ao ensaio Lupicínio esquecido?, presente no livro Balanço da Bossa, de 1968.
Augusto, entretanto, sabia da existência de Lupicínio e a Bossa Velha. Numa versão inicial do ensaio, publicada no Correio da Manhã (RJ, 3/9/67), o poeta menciona nominalmente o compacto triplo de Lupi, fazendo-lhe inclusive, como veremos, um comentário pouco elogioso. Embora no momento eu não tenha acesso a uma primeira edição de Balanço da Bossa, é certo que pelo menos desde a segunda edição do livro (1974) — quando Augusto revisa o texto e a relação discográfica — essa menção é suprimida. Onde no jornal se lia "Depois desse extraordinário lançamento [Augusto refere-se a Roteiro de um Boêmio] veio um verdadeiro long-play (sic), Lupicínio Bossa Velha (sic), de menor interesse", encontramos no livro um absoluto silêncio: Augusto de Campos menciona apenas o Roteiro de um Boêmio e logo em seguida parte para outro assunto.
Os motivos dessa mudança? Não sabemos. Apenas o próprio poeta pode nos contar. Mas, nesse primeiro momento, muito mais intrigante do que esse súbito sumiço ou o erro na classificação dos formatos é que Augusto tenha considerado o EP "de menor interesse". Afinal, quem escuta Lupicínio Rodrigues e a Bossa Velha tem no mínimo uma surpresa: não encontramos nele nem o acompanhamento romântico do Trio Simonetti, presente nas gravações de Roteiro de um Boêmio, e nem os delicados timbres de conjunto regional que embelezam Dor de Cotovelo; tampouco se ouvem aqui os arranjos de big-band que a Orquestra Tabajara de Severino Araújo e Jamelão estabeleceram, desde os anos 50, como um paradigma para o cancioneiro de Lupi. Não. É algo diferente. A "bossa velha" de Lupicínio é uma espécie de samba-canção jazzístico tocado em guitarra semiacústica, flauta e percussão. Há, nesse disco, uma considerável abertura ao virtuosismo técnico e à improvisação instrumental; as intrincadas construções harmônicas da guitarra e as linhas melódicas da flauta não são, em momento algum, postas em segundo plano pela suave voz de Lupi. Pelo contrário: como em tantos grandes discos de jazz vocal, os instrumentistas — embora não-creditados pela gravadora — gozam de notável protagonismo musical nessa "bossa velha" do gaúcho.
Ou seja: Augusto de Campos, que tanto apreciava o jazz moderno e seus encontros com a música brasileira, aparentemente deveria encontrar motivos de sobra para achar o EP interessante. Esse, afinal de contas, é um daqueles discos que teriam deixado o grande José Ramos Tinhorão — desafeto histórico de Campos nos duelos discursivos sobre a MPB — ressabiado e descontente: são poucas as gravações brasileiras da época que incorporam com tanto esmero o universo jazzístico à linguagem da nossa canção popular. E há, além disso, a voz. Lupicínio sussurra e sofre. Há ternura e também muito desespero. Um desespero confessional. Mas a confissão do gaúcho é discreta, silenciosa, como se feita ao padre. Se nas gravações de 1950 Lupi ainda procurava, dentro dos seus limites, certos voos vocais diante do microfone, aqui vemos uma variante da dicção quase-fala que tanto encantou os apologistas da bossa nova — como Augusto de Campos — dar as caras por completo; nesse disco, o approach lupiciniano ao canto pequeno amadurece e vira norma nas seis faixas.
Isso não é surpresa. Lupicínio diz ao próprio Augusto, na entrevista do ensaio, que sempre foi grande fã de Mário Reis, o precursor histórico dessa forma de cantar aqui no Brasil. E não é surpresa, também, que na continuidade da entrevista o sambista tenha admitido apreciar João Gilberto. Surpresa mesmo, em um primeiro momento, é que Augusto não tenha gostado dessa "bossa velha", ironicamente tão próxima da bossa nova que tanto apreciava. Mas essa ironia — essa inusitada e aparentemente contraditória aproximação — se explica pela boca do próprio Lupi: para ele, ainda em resposta ao poeta, a bossa nova não seria "tão nova" assim… A partir daí, portanto, a sua "bossa velha" está livre para tangenciar as tendências da "bossa nova": em uma leitura arguta da tradição musical brasileira, Lupicínio propõe que uma inevitável continuidade atravessa o samba, o samba-canção e a bossa nova. Essa ironia conciliatória talvez ajude a explicar o motivo do disco ter caído no esquecimento tão rapidamente: embora recrudescessem, nos anos 60, os debates sobre os rumos da música popular brasileira, a alternativa proposta por Lupi não interessava, na prática, nem aos sentinelas da tradição e nem aos defensores da bossa nova. Em um cenário dominado por tantos discursos de ruptura, não havia espaço possível para a irônica continuidade de uma "bossa velha"-que-soa-como-bossa-nova.
Aqui, então, a afirmação de Augusto de Campos deixa de ser uma surpresa; Balanço da Bossa foi uma das mais importantes articulações teóricas em prol da bossa nova e a mais contundente crítica aos intelectuais tradicionalistas/nacionalistas associados ao domínio simbólico da finada Revista da Música Popular. Para Augusto, àquela altura do debate, um disco como o Bossa Velha de Lupi, com todas as suas propostas e implicações, só poderia ser mesmo "de menor interesse." Não temos como saber, entretanto, se o apagamento do disco no artigo/discografia foi fruto estratégico dessa discordância teórica-ideológica ou se alguma outra razão subjazia aos atos do poeta. Mas é uma pena, independentemente dos motivos, que ele, o apagamento, tenha acontecido. Pelo menos — se nos serve de consolo sessenta anos depois — as efemérides imperfeitas são muito mais numerosas do que as celebrações redondas que habitam as pontas das línguas: não nos faltam, portanto, datas esquecidas e quebradas para resgatarmos e redescobrirmos a "bossa velha" de Lupicínio Rodrigues.