terça-feira, 16 de janeiro de 2024

ILHA DO MEL FM

Já faz um bom par de anos que ouço pouca música durante a primeira semana do ano, pois por estas bandas é tradição nossa viajar para o litoral paranaense e se ocupar longamente com coisas como peixes, areia, sal, cloro etc. O agrupamento familiar constante e o lazer coletivo –  praia, caminhada, plantar guarda-sol, falar alto, cozinhar, encher a cara, passar protetor solar – evidentemente tornam o pós-réveillon um momento pouco propício para se enfurnar em um espaço auditivo particular, então durante alguns dias deixo de lado qualquer pretensão solipsista de estabelecer o meu próprio cardápio sonoro e me contento alegremente com o heteróclito fluxo de canções posto em marcha pela Ilha do Mel FM, presença sempre bem-vinda durante o almoço ou durante banhos de piscina.

Em um dado momento, fui abençoado (como, aliás, sou todo começo de ano) com a reprodução de Deslizes, de Sullivan & Massadas, na célebre interpretação de Raimundo Fagner. Embora minha companheira deteste essa música – que de fato sintetiza eloquentemente tanto os méritos quanto os limites não só do Fagner oitentista, mas também dos arranjos de Lincoln Olivetti e das composições de Sullivan & Massadas –, sempre faço questão de cantá-la bem alto (às vezes trocando a letra, vai entender) e de também mimetizar num nhónhónhón meio-agudo os maravilhosos licks de Robertinho de Recife, responsável por abrilhantar com sua guitarra elétrica as power ballads do amigo desde pelo menos o álbum de 1976. E como um prêmio, eu recebo o teu abraço. Infelizmente o Fagner mexe muito comigo há anos. Subornando o meu desejo tão antigo. Ouço essas músicas, penso nas baboseiras que ele fez – isso inclui até mesmo a postagem de conteúdo NSFW nos stories do Instagram em 2019 – e mesmo assim não consigo não-gostar do oroense mais célebre do Brasil. E fecho os olhos, para todos os teus passos. Meus amigos mais chegados sabem que existe até mesmo uma foto minha imitando a capa do supracitado álbum de 1976, tirada numa feira do vinil no verão de 2016. Me enganando, só assim somos amigos. E pior que ficou parecido.


Acompanhado do Yahoo – a banda de hard rock radiofônico de Robertinho de Recife –, Raimundo Fagner canta Deslizes como música incidental de Pra você voltar, grande sucesso do grupo em 1988. Repare só: enquanto a gravação de estúdio de Pra você voltar se encerra com uma citação instrumental de Detalhes, aqui Fagner chega a cantarolar um verso do clássico de Roberto e Erasmo. Acho o máximo.


Mas foi o verão de 2021 que me veio à mente logo em seguida, quando Deslizes deu lugar a De chão batido, dona da letra – cujos autores desconheço, mas que bem poderia ter sido escrita, sei lá, pelo Simões Lopes Neto – mais fascinante de todo o cancioneiro gauchesco:


Em xucras bailantas de fundo de campo
O fole e tranco vão acolherados O índio bombeia pro taco da bota E o destino galopa num sonho aporreado Polvadeira levanta entre o sarandeio E é lindo o rodeio de chinas bonitas Quem tem lida dura e a ideia madura Com trago de pura a alma palpita Atávico surungo de chão batido Xucrismo curtido na tarca do tempo Refaz invernadas de ânsias perdidas E encilha a vida no lombo do vento Faz parte do mundo do homem campeiro Dançar altaneiro no fim de semana O gaúcho se arrima nos braços da china E cutuca a sina com um trago de cana Basta estar num fandango do nosso Rio Grande Pra ver que se expande esse elo gaúcho Esta pura verdade que não tem idade É a nossa identidade aguentando o repuxo Atávico surungo de chão batido Xucrismo curtido na tarca do tempo Refaz invernadas de ânsias perdidas E encilha a vida no lombo do vento

 

O atávico surungo de chão batido, as xucras bailantas curtidas na tarca do tempo e a vida encilhada no lombo do vento me fizeram pensar no vizinho da frente lá do litoral. Ele já tinha subido a serra e voltado para Curitiba quando De chão batido tocou na Ilha do Mel FM, mas lembrei que ele passou todo o réveillon de 2020/21 ouvindo essa música ad nauseam e no volume máximo. Cheguei a decorar esses versos, que são os versos mais difíceis, herméticos e abstrusos de toda a história de todo o mundo lusófono. Era um CD dos Serranos – quem sabe um pendrive – e tudo indica que essa faixa estava na função repeat do aparelho e nenhum familiar do vizinho percebeu ou se importou com isso. Aí ficou. E eu fui ouvindo e decorando.



Curioso que o apelido desse cara é Gaúcho, mas ele não é gaúcho, como alguém poderia suspeitar. Ele é apenas um ex-caminhoneiro que gosta muito dos Serranos. Aliás, gostar é uma coisa interessante. Dizem por aí que Manuel Bandeira considerava um verso de Orestes Barbosa – “Tu pisavas nos astros distraída”, de Chão de estrelas – o mais belo decassílabo da língua portuguesa. Pois então. Mesmo que a gravação de De chão batido seja dos anos 1990 e que “E encilha a vida no lombo do vento” não tenha o rigor do clássico e elegante decassílabo heroico de Orestes, podemos tranquilamente pensar que esse é o melhor decassílabo da gaita galega de todos os tempos. [1] Ou você conhece algum melhor? Duvido. Eu gosto.


*


A Ilha do Mel FM também toca muita coisa das paradas de sucesso. Ouvi exemplos de quase todas as variações possíveis de sertanejo e de piseiro, por exemplo. Toca funk também, como sói ocorrer nas rádios que se prezam. Um funk em especial, ainda que meio antigo (2015), me chamou a atenção: Perereca suicida, de Thiago Brava e MC Japa. Lembram de Sofia suicidou-se, da Jocy de Oliveira, que praticamente criou o trocadilho Sofia/sofria? Em Perereca suicida ocorre uma inversão muito significativa desse arranjo, pois aqui inexiste sofrimento na morte narrada pelos compositores: nessa canção, o suicídio da ambivalente perereca é o próprio ato da conjunção carnal, germe de toda a vida humana; quicando, a perereca, ao mesmo tempo órgão e organismo, morre ao se entregar ao amor sexual. Não há qualquer possibilidade para a angústia nessa morte – essa “grande morte” rilkeana, para quem gosta desse tipo de referência –, que deve ser realizada como uma espécie de gozo:


Perereca suicida, se joga e quica, se mata e quica
Perereca suicida, se joga e quica, se joga e quica Perereca suicida, se joga e quica, se mata e quica Perereca suicida, se joga e quica, se mata e quica Aponta pra mim que eu te mato Aponta pra mim que eu te mato Eu te encho de amor e te sufoco com abraço Eu te encho de amor e te sufoco com abraço


Ouvindo essa música na piscina, pensei também no pulo das pererecas. Literalmente. Pensei mesmo em algum sapo, ou em animal que o valha, pulando por aí. Abundam lagartos no litoral paranaense, então nada como confundir répteis com anfíbios e imaginar que existem muitos e muitos sapos saltitando pela restinga úmida depois de uma tempestade. É mais ou menos aquela imagem do poeta japonês Matsuo Bashô, que certa vez plasmou num antológico haicai o salto e a queda de uma rã em um velho tanque. Como dizia Haroldo de Campos (numa tradução que é piada interna entre meus amigos desde o já-distante começo da graduação): a rã salt’tomba.


Duas traduções mefistofáusticas e inter-semióticas do haicai de Bashô. Cortesia: Everton.


Imaginei, então, rãs salt’tombando por aí e pererecas quicando por lá enquanto justamente um MC Japa me lembrava com seu suicida batráquio das desgastadas e deliciosas relações entre Eros e Tânatos. E se um isopor do Paraná Clube mantinha a cerveja gelada e um ombrelone novinho desafiava o sol, transformando-o em sombra fresca, barreira alguma impedia as frequências moduladas da Ilha do Mel FM de enredar eu, minha companheira e meus sogros em um agradável banho de piscina na manhã de sábado, como se fossem os elementos emulsionantes dsssa maravilhosa mistura de funk, vanera, pop farofento, água e protetor solar.



NOTA:

[1] O decassílabo heroico possui acentos tônicos nas sílabas 4, 6 e 10, já a gaita-galega desloca o acento da sexta para a sétima sílaba.

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

O SEQUESTRO DA "BOSSA VELHA" NA DISCOGRAFIA DE LUPICÍNIO RODRIGUES

No último sábado, dia 27 de agosto, a morte de Lupicínio Rodrigues completou 48 anos. Efeméride inexata, daquelas que passam despercebidas. Mas uma data como essa, esquecida e quebrada, vem bem a calhar para falarmos deste pequeno e esquecido disco que o sambista gaúcho lançou em 1960, pela Copacabana: Lupicínio Rodrigues e a Bossa Velha, um compacto triplo de 45 rotações.

Lupicínio Rodrigues e a Bossa Velha, 1960. Compacto triplo de 45 rotações por minuto, selo Copacabana (CEP-4588). Acervo pessoal.

É um dos poucos discos que Lupi gravou como intérprete, o único na década de 1960. Certamente o menos famoso e o menos ouvido da sua obra. Se Roteiro de um Boêmio, gravado nos idos de 1950, teve seguidas reedições ao longo dos anos e Dor de Cotovelo (1973) teve ao menos duas reprensagens em LP, o humilde disquinho de 1960, com as suas seis faixas, jamais foi relançado ou reposto em circulação através de antologias/compilações. Um disco tão ignorado que chega a parecer insólito, absurdo: nem mesmo Augusto de Campos, que teve a chance de catalogar a obra de Lupi ao lado do próprio artista, coloca esse EP na ampla relação discográfica que elaborou como anexo ao ensaio Lupicínio esquecido?, presente no livro Balanço da Bossa, de 1968.

Augusto, entretanto, sabia da existência de Lupicínio e a Bossa Velha. Numa versão inicial do ensaio, publicada no Correio da Manhã (RJ, 3/9/67), o poeta menciona nominalmente o compacto triplo de Lupi, fazendo-lhe inclusive, como veremos, um comentário pouco elogioso. Embora no momento eu não tenha acesso a uma primeira edição de Balanço da Bossa, é certo que pelo menos desde a segunda edição do livro (1974) — quando Augusto revisa o texto e a relação discográfica — essa menção é suprimida. Onde no jornal se lia "Depois desse extraordinário lançamento [Augusto refere-se a Roteiro de um Boêmio] veio um verdadeiro long-play (sic), Lupicínio Bossa Velha (sic), de menor interesse", encontramos no livro um absoluto silêncio: Augusto de Campos menciona apenas o Roteiro de um Boêmio e logo em seguida parte para outro assunto.

Os motivos dessa mudança? Não sabemos. Apenas o próprio poeta pode nos contar. Mas, nesse primeiro momento, muito mais intrigante do que esse súbito sumiço ou o erro na classificação dos formatos é que Augusto tenha considerado o EP "de menor interesse". Afinal, quem escuta Lupicínio Rodrigues e a Bossa Velha tem no mínimo uma surpresa: não encontramos nele nem o acompanhamento romântico do Trio Simonetti, presente nas gravações de Roteiro de um Boêmio, e nem os delicados timbres de conjunto regional que embelezam Dor de Cotovelo; tampouco se ouvem aqui os arranjos de big-band que a Orquestra Tabajara de Severino Araújo e Jamelão estabeleceram, desde os anos 50, como um paradigma para o cancioneiro de Lupi. Não. É algo diferente. A "bossa velha" de Lupicínio é uma espécie de samba-canção jazzístico tocado em guitarra semiacústica, flauta e percussão. Há, nesse disco, uma considerável abertura ao virtuosismo técnico e à improvisação instrumental; as intrincadas construções harmônicas da guitarra e as linhas melódicas da flauta não são, em momento algum, postas em segundo plano pela suave voz de Lupi. Pelo contrário: como em tantos grandes discos de jazz vocal, os instrumentistas — embora não-creditados pela gravadora — gozam de notável protagonismo musical nessa "bossa velha" do gaúcho.

Dá para ouvir na íntegra no YouTube, mas digitalização não é minha e a ordem dos lados está invertida.

Ou seja: Augusto de Campos, que tanto apreciava o jazz moderno e seus encontros com a música brasileira, aparentemente deveria encontrar motivos de sobra para achar o EP interessante. Esse, afinal de contas, é um daqueles discos que teriam deixado o grande José Ramos Tinhorão — desafeto histórico de Campos nos duelos discursivos sobre a MPB — ressabiado e descontente: são poucas as gravações brasileiras da época que incorporam com tanto esmero o universo jazzístico à linguagem da nossa canção popular. E há, além disso, a voz. Lupicínio sussurra e sofre. Há ternura e também muito desespero. Um desespero confessional. Mas a confissão do gaúcho é discreta, silenciosa, como se feita ao padre. Se nas gravações de 1950 Lupi ainda procurava, dentro dos seus limites, certos voos vocais diante do microfone, aqui vemos uma variante da dicção quase-fala que tanto encantou os apologistas da bossa nova — como Augusto de Campos — dar as caras por completo; nesse disco, o approach lupiciniano ao canto pequeno amadurece e vira norma nas seis faixas.

Isso não é surpresa. Lupicínio diz ao próprio Augusto, na entrevista do ensaio, que sempre foi grande fã de Mário Reis, o precursor histórico dessa forma de cantar aqui no Brasil. E não é surpresa, também, que na continuidade da entrevista o sambista tenha admitido apreciar João Gilberto. Surpresa mesmo, em um primeiro momento, é que Augusto não tenha gostado dessa "bossa velha", ironicamente tão próxima da bossa nova que tanto apreciava. Mas essa ironia — essa inusitada e aparentemente contraditória aproximação — se explica pela boca do próprio Lupi: para ele, ainda em resposta ao poeta, a bossa nova não seria "tão nova" assim… A partir daí, portanto, a sua "bossa velha" está livre para tangenciar as tendências da "bossa nova": em uma leitura arguta da tradição musical brasileira, Lupicínio propõe que uma inevitável continuidade atravessa o samba, o samba-canção e a bossa nova. Essa ironia conciliatória talvez ajude a explicar o motivo do disco ter caído no esquecimento tão rapidamente: embora recrudescessem, nos anos 60, os debates sobre os rumos da música popular brasileira, a alternativa proposta por Lupi não interessava, na prática, nem aos sentinelas da tradição e nem aos defensores da bossa nova. Em um cenário dominado por tantos discursos de ruptura, não havia espaço possível para a irônica continuidade de uma "bossa velha"-que-soa-como-bossa-nova. 

Aqui, então, a afirmação de Augusto de Campos deixa de ser uma surpresa; Balanço da Bossa foi uma das mais importantes articulações teóricas em prol da bossa nova e a mais contundente crítica aos intelectuais tradicionalistas/nacionalistas associados ao domínio simbólico da finada Revista da Música Popular. Para Augusto, àquela altura do debate, um disco como o Bossa Velha de Lupi, com todas as suas propostas e implicações, só poderia ser mesmo "de menor interesse." Não temos como saber, entretanto, se o apagamento do disco no artigo/discografia foi fruto estratégico dessa discordância teórica-ideológica ou se alguma outra razão subjazia aos atos do poeta. Mas é uma pena, independentemente dos motivos, que ele, o apagamento, tenha acontecido. Pelo menos — se nos serve de consolo sessenta anos depois — as efemérides imperfeitas são muito mais numerosas do que as celebrações redondas que habitam as pontas das línguas: não nos faltam, portanto, datas esquecidas e quebradas para resgatarmos e redescobrirmos a "bossa velha" de Lupicínio Rodrigues.