Já faz um bom par de anos que ouço pouca música durante a primeira semana do ano, pois por estas bandas é tradição nossa viajar para o litoral paranaense e se ocupar longamente com coisas como peixes, areia, sal, cloro etc. O agrupamento familiar constante e o lazer coletivo – praia, caminhada, plantar guarda-sol, falar alto, cozinhar, encher a cara, passar protetor solar – evidentemente tornam o pós-réveillon um momento pouco propício para se enfurnar em um espaço auditivo particular, então durante alguns dias deixo de lado qualquer pretensão solipsista de estabelecer o meu próprio cardápio sonoro e me contento alegremente com o heteróclito fluxo de canções posto em marcha pela Ilha do Mel FM, presença sempre bem-vinda durante o almoço ou durante banhos de piscina.
Em um dado momento, fui abençoado (como, aliás, sou todo começo de ano) com a reprodução de Deslizes, de Sullivan & Massadas, na célebre interpretação de Raimundo Fagner. Embora minha companheira deteste essa música – que de fato sintetiza eloquentemente tanto os méritos quanto os limites não só do Fagner oitentista, mas também dos arranjos de Lincoln Olivetti e das composições de Sullivan & Massadas –, sempre faço questão de cantá-la bem alto (às vezes trocando a letra, vai entender) e de também mimetizar num nhónhónhón meio-agudo os maravilhosos licks de Robertinho de Recife, responsável por abrilhantar com sua guitarra elétrica as power ballads do amigo desde pelo menos o álbum de 1976. E como um prêmio, eu recebo o teu abraço. Infelizmente o Fagner mexe muito comigo há anos. Subornando o meu desejo tão antigo. Ouço essas músicas, penso nas baboseiras que ele fez – isso inclui até mesmo a postagem de conteúdo NSFW nos stories do Instagram em 2019 – e mesmo assim não consigo não-gostar do oroense mais célebre do Brasil. E fecho os olhos, para todos os teus passos. Meus amigos mais chegados sabem que existe até mesmo uma foto minha imitando a capa do supracitado álbum de 1976, tirada numa feira do vinil no verão de 2016. Me enganando, só assim somos amigos. E pior que ficou parecido.
Acompanhado do Yahoo – a banda de hard rock radiofônico de Robertinho de Recife –, Raimundo Fagner canta Deslizes como música incidental de Pra você voltar, grande sucesso do grupo em 1988. Repare só: enquanto a gravação de estúdio de Pra você voltar se encerra com uma citação instrumental de Detalhes, aqui Fagner chega a cantarolar um verso do clássico de Roberto e Erasmo. Acho o máximo.
Mas foi o verão de 2021 que me veio à mente logo em seguida, quando Deslizes deu lugar a De chão batido, dona da letra – cujos autores desconheço, mas que bem poderia ter sido escrita, sei lá, pelo Simões Lopes Neto – mais fascinante de todo o cancioneiro gauchesco:
Em xucras bailantas de fundo de campoO fole e tranco vão acolherados O índio bombeia pro taco da bota E o destino galopa num sonho aporreado Polvadeira levanta entre o sarandeio E é lindo o rodeio de chinas bonitas Quem tem lida dura e a ideia madura Com trago de pura a alma palpita Atávico surungo de chão batido Xucrismo curtido na tarca do tempo Refaz invernadas de ânsias perdidas E encilha a vida no lombo do vento Faz parte do mundo do homem campeiro Dançar altaneiro no fim de semana O gaúcho se arrima nos braços da china E cutuca a sina com um trago de cana Basta estar num fandango do nosso Rio Grande Pra ver que se expande esse elo gaúcho Esta pura verdade que não tem idade É a nossa identidade aguentando o repuxo Atávico surungo de chão batido Xucrismo curtido na tarca do tempo Refaz invernadas de ânsias perdidas E encilha a vida no lombo do vento
O atávico surungo de chão batido, as xucras bailantas curtidas na tarca do tempo e a vida encilhada no lombo do vento me fizeram pensar no vizinho da frente lá do litoral. Ele já tinha subido a serra e voltado para Curitiba quando De chão batido tocou na Ilha do Mel FM, mas lembrei que ele passou todo o réveillon de 2020/21 ouvindo essa música ad nauseam e no volume máximo. Cheguei a decorar esses versos, que são os versos mais difíceis, herméticos e abstrusos de toda a história de todo o mundo lusófono. Era um CD dos Serranos – quem sabe um pendrive – e tudo indica que essa faixa estava na função repeat do aparelho e nenhum familiar do vizinho percebeu ou se importou com isso. Aí ficou. E eu fui ouvindo e decorando.
Curioso que o apelido desse cara é Gaúcho, mas ele não é gaúcho, como alguém poderia suspeitar. Ele é apenas um ex-caminhoneiro que gosta muito dos Serranos. Aliás, gostar é uma coisa interessante. Dizem por aí que Manuel Bandeira considerava um verso de Orestes Barbosa – “Tu pisavas nos astros distraída”, de Chão de estrelas – o mais belo decassílabo da língua portuguesa. Pois então. Mesmo que a gravação de De chão batido seja dos anos 1990 e que “E encilha a vida no lombo do vento” não tenha o rigor do clássico e elegante decassílabo heroico de Orestes, podemos tranquilamente pensar que esse é o melhor decassílabo da gaita galega de todos os tempos. [1] Ou você conhece algum melhor? Duvido. Eu gosto.
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A Ilha do Mel FM também toca muita coisa das paradas de sucesso. Ouvi exemplos de quase todas as variações possíveis de sertanejo e de piseiro, por exemplo. Toca funk também, como sói ocorrer nas rádios que se prezam. Um funk em especial, ainda que meio antigo (2015), me chamou a atenção: Perereca suicida, de Thiago Brava e MC Japa. Lembram de Sofia suicidou-se, da Jocy de Oliveira, que praticamente criou o trocadilho Sofia/sofria? Em Perereca suicida ocorre uma inversão muito significativa desse arranjo, pois aqui inexiste sofrimento na morte narrada pelos compositores: nessa canção, o suicídio da ambivalente perereca é o próprio ato da conjunção carnal, germe de toda a vida humana; quicando, a perereca, ao mesmo tempo órgão e organismo, morre ao se entregar ao amor sexual. Não há qualquer possibilidade para a angústia nessa morte – essa “grande morte” rilkeana, para quem gosta desse tipo de referência –, que deve ser realizada como uma espécie de gozo:
Perereca suicida, se joga e quica, se mata e quicaPerereca suicida, se joga e quica, se joga e quica Perereca suicida, se joga e quica, se mata e quica Perereca suicida, se joga e quica, se mata e quica Aponta pra mim que eu te mato Aponta pra mim que eu te mato Eu te encho de amor e te sufoco com abraço Eu te encho de amor e te sufoco com abraço
Ouvindo essa música na piscina, pensei também no pulo das pererecas. Literalmente. Pensei mesmo em algum sapo, ou em animal que o valha, pulando por aí. Abundam lagartos no litoral paranaense, então nada como confundir répteis com anfíbios e imaginar que existem muitos e muitos sapos saltitando pela restinga úmida depois de uma tempestade. É mais ou menos aquela imagem do poeta japonês Matsuo Bashô, que certa vez plasmou num antológico haicai o salto e a queda de uma rã em um velho tanque. Como dizia Haroldo de Campos (numa tradução que é piada interna entre meus amigos desde o já-distante começo da graduação): a rã salt’tomba.
Imaginei, então, rãs salt’tombando por aí e pererecas quicando por lá enquanto justamente um MC Japa me lembrava com seu suicida batráquio das desgastadas e deliciosas relações entre Eros e Tânatos. E se um isopor do Paraná Clube mantinha a cerveja gelada e um ombrelone novinho desafiava o sol, transformando-o em sombra fresca, barreira alguma impedia as frequências moduladas da Ilha do Mel FM de enredar eu, minha companheira e meus sogros em um agradável banho de piscina na manhã de sábado, como se fossem os elementos emulsionantes dsssa maravilhosa mistura de funk, vanera, pop farofento, água e protetor solar.
NOTA:
[1] O decassílabo heroico possui acentos tônicos nas sílabas 4, 6 e 10, já a gaita-galega desloca o acento da sexta para a sétima sílaba.